ZONAS DE CONFLITO_Novos territórios da arte

 

Thomas Hirschhorn, Bataille Monument, Kassel 2002, documenta11

(Original: Sandra Vieira Jürgens, «Zonas de Conflito_Novos Territórios da Arte», EM FRACTURA, Colisão de TerritóriosProjecto Terminal, Plano 21 e Câmara Municipal de Oeiras, 2005, pp. 2-3 [Jornal de Exposição])

Se o impacte da obra artística na sociedade está sempre em questão, tal como o envolvimento dos fenómenos e da actividade artística no campo social, cabe reflectir sobre a gestão organizativa das exposições, que modelos facilitam a existência de uma arte inserida no campo cultural, inserida na sociedade, bem como a existência de um meio artístico com um papel activo na construção de novas práticas com  repercussão no contexto da actualidade. Trata-se de pensar propostas que captem as realidades de hoje, que expandam o conhecimento dos processos participativos, críticos, que tenham como finalidade actuar, assumindo o papel de questionar e contestar os problemas da gestão cultural, da museologia, da programação e da prática curatorial. Tomar uma posição crítica e reflexiva em relação às circunstâncias em que ocorre a sua intervenção, levar a cabo o exercício de pensar a mediação e a recepção do fenómeno artístico e afrontar os principais desafios que a transformação dos modos de experiência na conjectura contemporânea impõe às práticas de comissariado. A expansão das indústrias de entretenimento absorve e reduz o espaço de intervenção, tornando mais evidente ainda as fissuras que se abrem, separando e distanciando, o público dos artistas. Existe a possibilidade de fazer exposições para públicos mais especializados ou mais  predispostos ao esforço de participação nas manifestações culturais, mas isso apenas dissimula o problema – a fractura – sobretudo com o domínio alargado do cultural e do social. Como se poderá actuar com o objectivo de melhorar o papel dos museus, das instituições culturais, da prática de organização de exposições?

É ainda a partir de noções como a de fractura ou a de conflito que é possível reflectir sobre as novas concepções e formas de expor arte contemporânea. Novas concepções que hoje impulsionam a criação de espaços de debate, abertos a modelos de actuação que não reproduzem ideias estabelecidas a partir da cultura dominante. Refiro-me a práticas que oferecem um movimento de deslocamento e permitem falar de um paradigma mais aberto, disjuntivo, que permite dar conta da crescente importância de propostas de trabalho que desafiam a rígida inscrição espacial, territorial, produzindo um movimento desestabilizador em relação a concepções desde há muito instituídas no meio artístico.

Até muito recentemente a organização de mostras de arte contemporânea manteve-se dentro dos limites definidos pela museologia clássica e pela nova museologia, ajustando-se ao objectivo de consolidar zonas de estabilidade inerentes ao seu discurso. A exposição poderia construir-se a partir de uma visão historicista, visando por exemplo a transmissão de um saber e de um conhecimento conciso e claro, a representação de uma verdade, através da coerente interpretação e selecção dos objectos expostos. Ou seja, a planificação da exposição criava um contexto que favorecia a apresentação de um discurso expositivo sem descontinuidades, sem fissuras e sem fracturas, de acordo com uma visão positivista da arte. À margem ficavam as obras que não reafirmavam a autoridade do discurso oficial bem como as diferentes interpretações e significados em tensão, ou mesmo os dilemas que acompanham os processos de organização expositiva. Desta forma destacava-se a lógica linear destas exposições, a sua estrutura fixa e unidireccional, que se reflectia na disposição sequencial do conjunto de obras apresentadas e no estabelecimento de um circuito específico com um princípio e fim bem assinalados.

Sendo esta a visão que marcou a organização de um número muito significativo de mostras de arte até os nossos dias, actualmente existem indícios e exemplos da crescente emergência de um fenómeno relacionado com a alteração da natureza destas exposições. De acordo com um diferente enquadramento da prática curatorial, existe a tendência para construir projectos que não obedecem a um discurso único, vertical e especializado, e que no desejo de representar diferentes interesses admitem explorar outras direcções e outras formas de entender o domínio da prática museológica. Uma das suas características é distanciarem-se da visão instituída, disciplinar e alicerçada em modelos expositivos da História da Arte, veículos para a legitimização de um enunciado, de uma ideia e de uma situação dadas à partida. Ou até, distanciarem-se das exposições temáticas da nova museologia, que se organizavam em torno da adopção de temas normativos e previsíveis (como o auto-retrato, a paisagem) e da valorização de temas exóticos, expondo alguns casos a qualidade meramente ilustrativa das obras seleccionadas.

Se, de acordo com as tendências mais recentes, a dúvida, a pergunta, a controvérsia e o desacordo foram sempre realidades a evitar no seio do discurso e das representações museográficas, elas advêm pontos de partida para a realização de projectos expositivos. Isto significa que os dilemas e as hipóteses de conflito emergem por intermédio da escolha de formatos expositivos não sistematizados, da selecção de temas que tenham um papel mais relevante na produção e na apresentação de intervenções artísticas. Caso paradigmático desta tendência é a mais recente exposição inaugurada no Museu d’ Art Contemporani de Barcelona, Desacuerdos. Sobre arte, politicas e esfera pública en el Estado Español (2005). Tratou-se de uma co-produção entre o MACBA e várias instituições culturais e universitárias, destinada a encetar um projecto expositivo sobre a história da arte da segunda metade do séc. XX, todavia sem que a direcção seguida fosse a apresentação de uma narrativa historiográfica oficial ou a instituição de uma nova versão académica.

Assim, uma das suas primeiras estratégias foi desenvolver um processo de investigação inovador que em primeiro lugar partiu de um tema-problema – indagar as possibilidades e os modos de construir e fazer história a partir do contexto da sociedade contemporânea – para prosseguir a reflexão por meio da organização de jornadas de debate públicas. É de salientar o interesse dos organizadores em configurar a discussão do tema sob uma perspectiva que enquadrasse um universo de intervenientes mais abrangente. Nesse sentido o processo de investigação foi desenvolvido tendo por base uma estrutura horizontal, de colaboração entre várias instituições culturais que desencadearam dinâmicas de trabalho não circunscritas aos limites académicos e institucionais. O propósito foi a criação de uma estrutura descentralizada, a qual possibilitava a participação e dinâmicas de  trabalho em grupo de colectivos e de associações, e a organização de debates públicos  e encontros que contavam com a presença de especialistas e colectivos que desenvolvem práticas artísticas e sociais. Ou seja, para além da exposição propriamente dita, com a presença das obras artísticas, adoptaram-se programas de actividades, cuja ordem de trabalhos não estava delineada com o intuito de criar plataformas destinadas à transmissão de conhecimentos ou à legitimação de um discurso ou de uma qualquer via de pesquisa. Elas funcionaram preferencialmente como instâncias de encontro, de reuniões onde o processo de construir saber foi partilhado, sem que o objectivo imediato fosse a obtenção de soluções ou respostas absolutas e definitivas. Quer isto dizer que deixa de existir a tentativa de adequar os processos a situações de debate previsíveis, existindo a possibilidade de confrontar, discordar do discurso oficial e apresentar discursos alternativos. O fundamento é integrar múltiplas vozes, de veicular leituras produzidas a partir de várias frentes, por exemplo organizando para o efeito debates públicos em rede (www.desacuerdos.org), que procuram superar qualquer noção de autoridade cultural e instituir o princípio da flexibilidade e da negociação nos processos de produção de conhecimento, de modo a que outros âmbitos, visões e perspectivas normalmente não contemplados numa organização expositiva vertical, possam emergir e inscrever-se no espaço público.

De acordo com esta perspectiva, as exposições deixam de ser simples mostras de objectos, para constituírem mostras de arte ampliadas que incluem seminários, conferências e outras actividades que escapam à norma da política expositiva: a apresentação do artista sob a condição de “génio”, do valor incalculável ou exótico das obras expostas, da raridade dos objectos, a criação de um ambiente altamente estetizado. Nesse sentido, esta concepção de pós-exposição é aquela que supera a aura dos objectos finalizados, a excessiva ênfase do visual, e torna crucial o património imaterial, a discussão e as interrogações geradas pelas obras e pelas acções dos artistas. A experiência de visitar uma exposição converte-se assim num acontecimento cultural, que transcende os limites confinados da esfera simbólica da arte, e torna habitável o ambiente silencioso dos espaços artísticos, em muitos casos a imagem metafórica do estado da arte.

Distante desta concepção está ainda o caso paradigmático do modelo sensacionalista seguido na produção das exposições-bomba (“blockbuster”), as mostras-espectáculo, rigorosamente planificadas pelos departamentos de gestão e de marketing cultural, nas quais os objectos artísticos são recriados como mercadorias para atrair mais visitantes, encarados como consumidores de mais um produto do mercado. Nelas ganha relevância o aspecto lúdico e o poder de mobilização, a hiperactividade gerada pelo número de visitantes, numa visão que contrasta com a formalidade convencional do cenário ritualizado, destinado a expressar as exigências paradigmáticas da alta cultura, onde impera o respeito, o silêncio, a contemplação da originalidade, da autenticidade e beleza do que se apresenta.

A partir desta perspectiva, gostaria de referir algumas exposições que se constituiram segundo pârametros que se dissociam destes modelos e se enquadram no domínio de uma museologia crítica, que relaciona as dimensões artística, social e política, diferindo das aproximações tradicionais das mostras de arte, circunscritas a dar visibilidade aos artistas consagrados ou à sua produção, e só depois à difusão e à acção cultural (de acordo com uma concepção fiel a Malraux).

Nestes termos situou-se a mais recente Documenta 11, Kassel 2002, comissariada por Okwui Enwezor, com a colaboração de outros intervenientes Carlos Basualdo, Ute Meta Bauer, Susanne Ghez, Sarat Maharaj, Mark Nash, Octavio Zaya , segundo uma linha de orientação que privilegiou a colaboração e o estabelecimento de um modelo curatorial associativo, favorável à emergência de uma heterogeneidade de escolhas em detrimento da afirmação de uma visão unívoca. Significativo foi ainda o facto de este evento ter-se caracterizado pela organização de plataformas de debate mais flexíveis e interdiciplinares, que estiveram situadas em diferentes lugares do globo Berlim e Viena, Nova Deli, Santa Lúcia e Lagos. De acordo com a noção de descentralização, a iniciativa compreendeu a criação de uma estrutura na qual as artes plásticas partilham espaço com outras áreas da produção de conhecimento, e veio a caracterizar-se por uma acrescida vontade de ampliar o debate para além dos limites estéticos da arte. Com efeito, a discussão situada em torno das redes globais, da democracia, da sociedade civil, do colonialismo e do pós-colonialismo, da nova demografia de identidades e do lugar da arte no mundo veio a decorrer em diversos seminários com o contributo de outros campos da produção cultural (participaram historiadores, sociólogos, antropólogos, escritores, cineastas e artistas plásticos).

Foi ainda no âmbito de realização da Documenta 11 que encontrámos exemplos de intervenções artísticas vinculadas a esta perspectiva, que superam o confinamento cultural da arte e dos artistas, e propõem formatos que promovem a integração mais directa da arte no plano do social. O projecto apresentado por Thomas Hirschhorn é um exemplo significativo e veio a ter grande repercussão, na medida em que, à semelhança de outros projectos da sua autoria, baseou-se no desenvolvimento de formas de diálogo com a comunidade. Tratou-se de Bataille Monument, uma intervenção que se seguiu à apresentação dos monumentos para Spinoza em Amsterdão (1999) e para Deleuze em Avinhão (2000), e veio a realizar-se fora dos espaços institucionais, todavia sem que o intuito fosse simplesmente encetar uma expansão espacial ou usufruir de novas condições físicas do espaço. A intenção foi a integração e o enquadramento de uma intervenção artística num determinado contexto comunitário, nomeadamente numa das áreas mais pobres de Kassel, habitada pela comunidade de imigrantes turcos, tendo em vista a realização partilhada de uma área comum – um bar explorado por jovens, uma biblioteca, um estúdio de televisão – capaz de se oferecer como alternativa às fissuras sociais e fomentar a  interacção, a troca e discussão de ideias em torno de um campo de reflexão que se estendeu à vida de George Bataille, à literatura, ao erotismo, à arte, à política, à economia.

A forma como Thomas Hirschhorn inteliga as dimensões artística, social, política e territorial, também é claramente visível em Public Works – The Bridge, um trabalho de 2000 apresentado para a exposição Protest and SurviveDemonstration demonstration. Nele concebeu uma ponte, de estrutura precária, realizada em madeira, cartão e fita adesiva que ligava física e metaforicamente dois espaços, diferentes ideologias e esferas sociais: a Whitechapel Art Gallery e uma livraria situada na vizinhança, a “The Freedom Press & Bookshop”, dedicada à divulgação da literatura anarquista. Deste modo,  procurava estabelecer uma conexão que permitisse realizar a passagem de um lado a outro, e que fosse a materialização plástica de um canal secreto e interdito onde tinha lugar a disseminação da informação.

Porque falamos de uma comunidade de prática, de lugares de encontro comunitários onde se combinam a teoria e a prática, de diferentes maneiras de representar o que pensamos e dizemos, gostaria de referir por último uma exposição. Em 2004, o Museu d’ Art Contemporani de Barcelona (MACBA) organizou a exposição Cómo queremos ser gobernados?, comissariada por Roger Buergel. Foi uma iniciativa que impulsionou a descentralização da prática expositiva e gerou um contexto adequado ao estabelecimento de um programa de actividades públicas (debates e conferências) que decorriam no espaço expositivo como noutros espaços públicos da cidade. Crucial neste projecto foi a concepção de uma exposição construída mediante a participação de vários intervenientes e pelo cruzamento e relação entre diferentes comunidades culturais e intelectuais. Este aspecto reveste-se de uma dimensão política, na medida em que no processo de diálogo entre os participantes possibilita-se que as diferentes visões se tornem públicas e se vislumbre um lugar onde confluem redes de conhecimento, onde circulam ideias, valores, concepções, desejos. O que certamente implica a negociação com diversas comunidades, a realização de experiências que comportam factores de incerteza, naturais na produção de um conhecimento relacional que compreende conhecimentos especializados e conhecimentos baseados na vida quotidiana dos visitantes e dos não-especialistas, e na construção de uma arte orientada para a comunidade.

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