Entrevista a Manuel Borja-Villel, director do Reina Sofía

Manuel Borja-Villel

(Original:  Sandra Vieira Jürgens, «O Reina Sofia é como uma cidade. Entrevista a Manuel Borja-Villel, director do Museu Reina Sofía». In: Artes & Leilões, nº 26, Maio/Junho 2010, pp. 10-15.)


Manuel Borja-Villel, apresenta-nos sempre reflexões e ideias claras sobre o que um museu deve e pode ser. Emancipar a instituição museológica dos discursos historiográficos modernistas tem sido a sua linha de actuação prioritária.

Para além de dirigir o Museo Reina Sofía, Borja-Villel é o actual Presidente do Comité Internacional de Museus e Colecções de Arte Moderna, organismo vinculado ao ICOM. A sua passagem pelo museu da Fundación Tàpies e pelo Museu d’Art Contemporani de Barcelona foram determinantes para o posicionar entre os principais protagonistas da cena artística contemporânea. O seu discurso fluido e assertivo fornece importantes pistas para compreender opções de programação e linhas de actuação que reflectem a consciência de que os museus têm a obrigação de apontar certos caminhos em detrimento de outros na tentativa de nos ajudar a melhor compreender o mundo.

Sandra Vieira Jürgens: Do seu ponto de vista, o que é que define a nossa época? Quais são os temas mais marcantes?

Manuel Borja-Villel: Quem melhor escreveu sobre isso foi Frederic Jameson quando afirmou que na nossa época, ao contrário de outras, não há um cânone, não existem temas pré-estabelecidos ou muito definidos. Será sempre mais fácil caracterizar os anos 50, que foi o período do triunfo da pintura, do automatismo, etc. Hoje em dia, pelo contrário, vivemos uma época global onde parece que tudo é possível e em que aparentemente não há nenhum tema ou série de temas que possamos afirmar serem o do nosso século.

Por outro lado, se vivemos numa época caracterizada pelo elemento global, homogéneo, existe também um elemento de localidade, que tem a ver com o identitário e com aquilo que é próprio de um determinado período. Por exemplo, todos os museus, todas as regiões procuram ter cada vez mais uma marca de identidade. Todavia já não temos os estilos regionais, como acontecia no séc. XIX. Assim sendo, diria que esses são os temas de hoje. É a globalidade, e também a identidade, a procura de algo próprio num mundo global.

O tema, o subject matter, as ideias do presente são as que estão em relação, não são ideias fixas e é por isso que não se pode falar em escolas regionais como havia em Espanha ou noutros países no princípio do século. O tema é esta relação global/local, entre a identidade e a uniformização. Do mesmo modo, é a relação entre um passado que nos oferece uma série de cânones e de ideias e um futuro que desconhecemos, porque vivemos numa época de crise sistémica. De igual modo, existe uma tensão entre todas as possibilidades críticas oferecidas por uma sociedade aparentemente aberta e a insaciabilidade do mercado e do sistema que procura absorver absolutamente tudo. Creio que é esta tensão que define o tema ou os temas da nossa época.

SVJ: Nicolas Bourriaud, no livro The Radicant, fala na tarefa de definir o que será a primeira cultural mundial e diz que o multiculturalismo falhou em inventar uma alternativa ao universalismo modernista. Édouard Glissant refere as forças homogeneizadoras da globalização e fala na mondialité, como modo de incrementar o diálogo global. Como é que podemos pensar a ideia de identidade cultural?

MBV: Édouard Glissant usa uma metáfora que eu gosto muito que é a da identidade que se estabelece entre os arquipélagos, referindo que a identidade de um arquipélago não é a de cada ilha mas a relação entre todas elas. E claro, esta noção é diferente da de identidade fechada, adstrita a um território do continente. E de facto, neste sentido, estou próximo do que diz Glissant. O tema para mim não é tanto o de identidade, que tem a ver com a existência de categorias e com temas do séc. XIX, como os que surgiram em Espanha na passagem do séc. XIX para o séc. XX: o de mediterranismo, de Torres-García, ou o de noucentismo catalão. A meio do século tivemos também a noção de identidade francesa contra a de identidade norte-americana. Hoje, o que define a nossa época não é a identidade, mas a tensão entre o identitário e o global, que é esta espécie de fluxo que está associado à tensão entre a multiplicidade de possibilidades de crítica, de procura de novas formas poéticas e, por outro lado, a insaciabilidade do sistema em absorver-nos. A identidade não pode ser separada deste sentido de global que é diferente da identidade do séc. XIX, que está adstrita à ideia de território e de nação.

SVJ: Voltando à obra Radicant de Nicolas Bourriaud, que opinião tem sobre ela?

MBV: Não li o seu último livro mas em geral parece-me que Nicolas Bourriaud acaba por cair num formalismo. No espaço relacional ele tem um problema, pois este não é um espaço político, acaba por ser um espaço formal. E como espaço formal que é, acaba por se converter em design.

SVJ: Em termos de cultura museológica, que práticas e conceitos representam o nosso tempo?

MBV: Em geral, a nível das instituições estamos a viver uma época de crise sistémica. Assim os museus deixaram de ser o lugar das musas, o lugar onde se guardavam os tesouros das grandes nações, dos impérios, para passarem a converter-se em algo semelhante aos centros comerciais. Os museus estão neste momento a passar por um período de redefinição do que significa o espaço público. Tal como na sociedade civil, ou seja, na sociedade em geral, a dualidade privado/público – que dominou desde o séc. XIX até aos nossos dias – faz cada vez menos sentido. Isto porque a barreira entre o público e o privado é mais efémera. Cada vez mais o privado é domínio público e espaço de publicidade, e vice-versa. Acho que as instituições culturais, educativas, políticas em geral, têm de transformar-se em instituições do comum. Nos museus estamos perante esta possibilidade de contemplar esta outra forma de institucionalidade e das duas uma: ou nos convertemos em lugares de espectáculo, de consumo, que não tem nada a ver com educação mas com a reprodução do status quo ou, por outro lado, procuramos outras formas de institucionalidade. E considero que estas novas formas de instituição têm muito a ver com o que Judith Revel, Toni Negri, Castoriadis e tantos outros falam, que é da esfera do comum que não é nem privada nem pública, mas que é outra. Não é uma esfera que tem a ver com a ideia de multitude, é um processo que é constituinte porque se vai conformando ao mesmo tempo que se vai fazendo, é um processo onde a separação entre professor e aluno, o que sabe e o que não sabe, ou entre o artista e o espectador, está a mudar completamente. E acho que os museus deveriam transformar-se e seguir nesta direcção.

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Entrevista a João Fernandes, director do Museu de Serralves

Tobias Rehberger, “Mutter 81%”, 2002. Metal, papel plastificado, tecido, acrílico, madeira, fita adesiva. 280 x 700 x 570 cm. Fotografia: Rita Burmester.


(Original: Sandra Vieira Jürgens, «Tudo é possível quando falamos de arte. Entrevista a João Fernandes», Artes & Leilões, nº 25, Março/Abril 2010, pp. 08-13.)


Sandra Vieira Jürgens: O sistema artístico tem-se complexificado com o progressivo aparecimento de mais intermediários, curadores, gestores, produtores, etc. Por outro lado, a história da arte, vive e convive com outras histórias – temos a história da curadoria, das exposições – onde o nome dos artistas deixa de ser central. Há uma tendência para nos afastarmos cada vez mais dos artistas e da arte?

João Fernandes: Espero que não, porque continua a ser essencial que a obra de arte seja aquilo de que falamos quando falamos de arte. E, às vezes, penso que é uma questão mais própria da sociologia, de uma análise da sociedade e do mundo em que vivemos, de tudo quanto em torno da arte se gera. Pode ser da sociologia ou pode ser da economia, mas tudo isso ruiria se não houvesse obras de arte. E interessa-me sobretudo, numa sociedade contemporânea, ir às obras de arte, trabalhar com elas e, a partir delas, aprofundar todo um ponto de vista sobre o que possa ser uma situação contemporânea. Confesso que sou muito menos sensível às estratégias de legitimação de um mundo da arte que exista para além das obras de arte. Sabemos que ele existe, obviamente, seja a nível das economias que gera – e aí nós entramos pelo universo das galerias, do mercado, das feiras de arte, dos coleccionadores, etc. – seja ao nível das instituições que se criaram para a obra de arte, e sabemos que na história dessas instituições e dos eventos que se criam para a apresentação da obra de arte surge toda uma série de outras instâncias mediadoras, entre as quais os curadores.

Continuo a achar que o curador deve ter como especial função trabalhar com obras de arte, saber escolhê-las, criar condições para os artistas as produzirem e salvaguardar acima de tudo condições únicas de produção e de excepção para o artista apresentar o seu trabalho. Mas interessa-me muito menos todo o outro universo, quanto a mim mais sociológico ou económico. Ele existe, temos de estar atentos a ele, convém estarmos informados, são instâncias de legitimação importantes, mas não as mais importantes. As mais importantes são para mim os artistas e as obras de arte que eles fazem.

E vemos a fragilidade de tudo isso quando os mercados entram em crise. É interessante e fascinante assistirmos a uma situação de crise em que obras de arte são por vezes valorizadas em função de critérios advindos não do contexto da produção ou da criação do contexto artístico, mas sim do contexto da recepção da parte dos coleccionadores, dos galeristas, dos próprios curadores. Esses critérios acabam muitas vezes por ser postos em questão nas alturas de crise. E os artistas continuarão a fazer outras coisas e a surpreender-nos, uns sim, outros não, depende. A legitimação para a obra de arte são os artistas.

SVJ: Os artistas hoje em dia detêm poder?

JF: Não é uma questão de poder, é mais uma questão de coincidências, de afinidades, de interesses e de práticas. Há artistas que detêm o poder e nessa medida estão a trabalhar… O poder aproxima-nos sempre da recepção e não da produção. E, portanto, quando um artista se ocupa de um poder para a distribuição do seu próprio trabalho ou de um trabalho de outros, ele não está a trabalhar enquanto artista, está a adoptar outras funções que não seriam aquelas que se esperariam dele. Pode fazê-lo – isso sempre aconteceu, Rubens fê-lo, Rembrandt não o fez – mas o facto de um artista ser melhor ou pior não tem nada que ver com o facto de ele ter essa tentação, ou essa opção, ou esse talento. Há artistas que cuidam da sua recepção, há outros que não o fazem, uns não são melhores do que os outros por causa disso. Não é isso que conta quando vamos confrontar as suas obras, obviamente. É muito importante quando trabalhamos com obras de arte e arriscamos o nosso ponto de vista, a nossa opinião, o nosso confronto, procurarmos afastar-nos um pouco. Nunca o faremos completamente, mas devemos apartar-nos um pouco de todos os outros contextos de ornamentação ou de apresentação da obra de arte que muitas vezes são suscitados pelo mundo da arte. E, nessa medida, no mundo da arte continua a interessar-me mais os artistas do que, propriamente, todas as outras instâncias que nele acontecem. Em relação a essas instâncias, tenho a obrigação de estar informado e actualizado, de conhecer os interlocutores e definir estratégias de uma instituição em relação a todos esses agentes. Mas, para mim, num museu o lugar principal é para o artista e para as obras de arte que o artista faz.

SVJ: Seja enquanto director ou curador necessita de critérios de selecção, regras de inclusão e exclusão, decide quem expor, quem destacar, quem ocultar? Como é que decide? Como é que obtém, organiza e reflecte sobre a informação de que necessita para o seu trabalho?

JF: Há obras de arte que me interessam e outras não. E às vezes há mudanças, até em mim, há obras de arte que num momento não me interessam e que depois eu venho a reapreciar num outro contexto, em função de mais informação que adquiri, de um maior conhecimento da obra de um artista, etc. Se há algo que é muito interessante em arte é que as posições não são imutáveis, podemos mudar de opinião em arte em função de novas evidências que os artistas constroem, de nova reflexão, etc. A arte é um confronto sem fim com ela mesma e connosco quando estamos perante ela. Confesso que, em relação à história dos mediadores, uma coisa que nunca me agradou foi que os artistas fossem ilustradores das ideias seja de um pensador seja de um curador. Nunca gostei de exposições colectivas em que os artistas fossem apenas ilustradores de uma ideia por vezes bastante pobre, bastante frágil inventada pelo curador. Interessa-me mais uma reflexão a partir de uma obra de arte, uma reflexão feita a priori, antes da obra de arte. E não me interessa tanto que uma obra de arte seja a ilustração de uma teoria, por exemplo, interessa-me mais que teorias se podem construir a partir da evidência da obra de arte. E tenho particular fascínio por obras de arte que de algum modo estejam em constante redefinição em relação à própria natureza da obra de arte. Obras que arrisquem criar novos problemas, suscitar novas questões, não percorrendo percursos já efectuados por outros artistas, sem com isso estar refém de um mito de originalidade. Acho que é bastante importante que a arte não se repita em soluções académicas, maneiristas, que possam ser mais ou menos estafadas em função de gostos que acabam por ser dominantes, criados em função de instâncias que não são propriamente a discussão do que é a obra de arte mas sim do que é a sua valorização em termos do mercado, a sua legitimação no contexto sociológico, etc.

Portanto continuo a gostar de artistas que sabem que a obra de arte é um confronto em aberto e que nunca é fechado por uma resposta. Se há algo que me interessa são as obras de arte que criam problemas em que eu não tinha pensado, que me fazem mudar de opinião, que me fazem conhecer novas coisas. Confesso que não sou muito sensível a uma obra de arte que seja apenas a expressão de uma emoção ou de um lirismo particular de um artista, ou de uma sensibilidade particular. Acho que a obra de arte é mais do que isso. Interessa-me que a obra de arte seja um precipício onde nós caímos e descobrimos novas coisas enquanto caímos. E depois voamos! Não é um só caminho, às vezes é como numa floresta em que não há só um caminho para sairmos dela e por vezes vamos chegar a caminhos que não nos levam a lado nenhum. Mas nesse percurso interessam-me as obras de arte que precisamente nos confrontam com caminhos novos e com potencialidades que eu nunca pensara antes serem possíveis. Gosto pouco de uma arte que cite outras obras de arte, mas não quer dizer que isso não possa ser feito. Aliás, acho que se há algo que é importante quando falamos de arte é não admitir que haja só uma regra ou que haja um interdito.

Tudo é possível quando falamos de arte. Mas dentro do que é possível há coisas que me interessam mais e outras menos. Por exemplo, nunca fui muito fascinado pela questão do pós-modernismo na situação em que esse pós-modernismo se possa ter materializado em obras de arte que eram apenas exercícios mais ou menos inteligentes de citação de obras feitas no passado. Interessa-me muito mais uma atitude modernista de construção permanente de novos paradigmas, de novas possibilidades para a obra de arte. É muito mais simpática a ideia de que há ainda uma modernidade por cumprir e fico muito satisfeito por no séc. XX, na cultura ocidental, ter sido possível haver uma actividade da criação humana em que se pôs em questão toda a sociedade que a contextualizava. Isso aconteceu com a obra de arte pelo menos em dois momentos das vanguardas, os primeiros vinte anos do séc. XX e depois as décadas de 60 e 70.

Não quer dizer que a vanguarda seja uma questão necessária, mas acho uma questão necessária o facto de se arriscar fazer aquilo que ainda não foi feito. Acrescentar uma obra de arte ao mundo é também uma questão ecológica. O mundo hoje está cheio de obras de arte e tem obras de arte a mais. E, nessa medida, acho que é muito importante que a obra de arte que se acrescenta ao mundo, ou que se apresenta nesse mesmo mundo, seja uma obra de arte da qual se sente uma grande necessidade e que essa necessidade não seja apenas individual. Essa necessidade nasce individual mas não pode morrer individual.

SVJ: Qual considera ser o estado actual da arte contemporânea se nos detivermos em questões referentes à produção artística?  O que é mais relevante?

JF: Eu acho que se trata sobretudo da diversidade – porque vivemos num tempo em que não podemos olhar para a obra de arte em função de um único paradigma ou de um único ponto de vista – e de como nessa diversidade cada artista constrói um universo singular. Isso é algo que caracteriza estes últimos 20 anos de criação artística, e que é explorado depois por várias vias, mas encontramos tantas práticas artísticas e tantos conceitos de arte quantos os artistas que delas são autores. E isso é algo de fascinante, que poderá ser também intimidante ou até assustador para quem tem um menor conhecimento do que se está a passar. Trata-se do desejo de se saber sempre mais, de saber que outras possibilidades e caminhos existem. Nunca houve tantos caminhos para as práticas artísticas quanto hoje no universo da contemporaneidade. E, de algum modo, os artistas ao longo de toda a história da arte foram conquistando novos espaços de liberdade, de prática, de actuação, de reflexão, etc. e hoje vivemos num mundo em que será impossível haver um guarda-chuva que reúna apenas algumas delas. Acho que as próprias contradições e paradoxos existentes na produção artística actual são extremamente produtivos e, nessa medida, da mesma forma que a condição humana também é complexa e diversificada, a obra de arte também o é. E isso é interessante. Não quero aqui introduzir um princípio de relativismo, porque o relativismo na verdade não existe, não quer dizer que tudo seja possível mas é importante que um artista sinta que para ele tudo é possível dentro das condições de exigência que ele vai criar para a sua própria obra. E isso é a gramática dessa mesma obra, são as formas, os materiais, a sua expressão, os seus conceitos, etc. Vivemos num tempo em que a diversidade não deve ser o caminho para o relativismo, deve ser o caminho para uma nova exigência, sem que com isso ela seja diminuída.

SVJ: O papel do curador tem sido descrito de diferentes formas. Boris Groys dá uma definição: Curating is cure. O que ele diz é que a obra necessita de um discurso, de uma ajuda externa, precisa da exposição e do curador para se tornar visível. Como é que o definiria?

JF: Acho que não é a obra de arte que necessita, mas sim a sociedade. E, normalmente, são os que criam as condições para a apresentação da obra de arte, que gostam da construção de discursos sobre a obra de arte, que muitas vezes diminuem ou até anestesiam o confronto com a própria obra de arte. Para mim, a história da curadoria é inseparável de uma certa história da socialização da arte, que faz com que o Estado-providência assuma o contexto das obras de arte contemporâneas como um território em relação ao qual vai ter estratégias de apresentação e, se possível, de tradução. Acho que a tradução da obra de arte é sempre um conformismo, interessa-me mais ver a questão da tradução como uma traição porque essa traição pode implicar pelo menos uma subjectividade. E é muito importante que nós – seja no discurso de uma instituição sobre as obras de arte que apresenta, seja no discurso de um curador sobre as obras de arte que reúne, ou no discurso de um coleccionador, de uma galeria ou de um crítico – estejamos bastante conscientes dessa subjectividade e dessa individualidade também. E que partamos para a discussão dessa consciência, que não procuremos encontrar verdades onde elas não existem, onde nem o próprio artista as encontrou quando construiu a obra de arte.

Acho que a sociedade foi de algum modo posta em questão por muitas das práticas artísticas contemporâneas do séc. XX. Porquê? Foi posta em questão nas instâncias de apresentação das obras de arte e nos tipos de arte que favoreceu. Porque certo tipo de formas de expressão artística, mais dependentes de uma relação directa com um sistema de poder – as instituições são consequência de sistemas de poder – foram postas em causa pelos artistas. Os artistas do séc. XX ousaram fazer arte pela primeira vez fora de um esquema de recepção; havia um sistema de recepção, eram os outros artistas; mas não eram os museus porque os museus não aceitavam as obras de arte que eles faziam; não eram as galerias porque as galerias não vendiam as obras de arte que eles faziam; não eram os críticos porque muitos dos críticos dominantes não entendiam aquilo que eles faziam. Novos críticos surgiram, entretanto, com as novas formas de arte – as ligações de certos críticos a certos artistas ou a certos movimentos são disso exemplo – mas a verdade é que, de algum modo, as novas formas de expressão artística também puseram em questão os fundamentos de uma sociedade que, por sua vez, entra em auto-questionamento ao longo do século em vários momentos: desde os momentos das guerras até aos do pós-guerra, o momento em que o mundo muda e deixa de ser um mundo colonial, por exemplo, para passar a ser um mundo mais global. Ao longo de todo o séc. XX há uma história de reapropriação da obra de arte pelas instituições.

SVJ: A certa altura Boris Groys diz ainda que o público talvez prefira ver as obras expostas em galerias ou numa feira, do que vê-las enquadradas num discurso curatorial. Esta ideia pode ser provocadora?

JF: Não. A questão dos públicos sempre foi uma questão conservadora, quer dizer, o gosto dos públicos é um gosto dominado pelos sistemas que numa sociedade permitiram que esse gosto fosse dominante. De maneira que é perfeitamente natural que os públicos ainda estejam reféns, inclusivamente, do sistema do salon do séc. XIX que hoje vêem protagonizado na feira de arte. Não o vêem protagonizado nas instituições, mas sim na feira de arte. Portanto, apesar de tudo, o salão burguês do séc. XIX revisita-se hoje em Basileia, Miami, Madrid, Paris, na Frieze, etc., pela falta de condições de apresentação que a obra de arte aí tem e pelo facto de tudo ser apresentado numa espécie de catálogo, que dá a sensação confortável de haver uma visão de conjunto global sobre as coisas sem que nunca haja ao mesmo tempo um ponto de vista que possibilite a interpretação e o confronto. Muitas vezes, nós vemos esse paradoxo de uma sociedade que pede aos museus que interpretem a obra de arte e que dispensa as feiras de arte de o fazerem. Nas feiras de arte essa situação está de algum modo tipificada precisamente por essa herança do modelo do salão. O museu é uma situação nova porque já não é propriamente o intérprete de um discurso de um poder. Nós sabemos que, dantes, um museu representava uma colecção que era uma demonstração de um poder, era um monumento de um poder. Hoje um museu já não o é, se bem que continue a ser, apesar de tudo, a ilustração dos sistemas de poder existentes numa sociedade. Houve, talvez, um breve período na história das instituições de arte do séc. XX em que elas existiram para os artistas e onde uma série de curadores surgiu como cúmplices dos artistas. Harald Szeemann foi um dos grandes casos e definiu esse paradigma, mas muitos curadores contemporâneos actualmente não são cúmplices. Podem ser amigos dos artistas, mas confrontam-se cada vez mais com a sua condição de funcionários de uma instituição e de um sistema que, apesar de tudo, quer que eles façam muita coisa que não tem a ver com aquilo que é a obra de arte ou a relação com o artista.

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