O Viajante. Sobre a obra de Pedro Cabral Santo


(Original: Sandra Vieira Jürgens, «O Viajante», Pedro Cabral Santo, Festival Internacional de Arte Vídeo, 2003).


“La monumentalité et la miniaturisation sont des états provisoires d’un object qui devient ainsi critique: ces deux états permettent d’analyser une situation, un moment de l’Histoire.”                                                                            Chris Burden[i]

 

O mundo torna-se infinitamente mais pequeno. É precisamente esta a visão que se exprime com uma força impressionante nas obras de Pedro Cabral Santo. O plano da miniatura, a redução e as diferenças de volume e de tamanho dos corpos surgem no seu trabalho carregadas de um valor plástico, emocional e crítico, adquirindo uma importância considerável na tradução de uma maneira de compreender e representar o «quadro do mundo». Associado a esta escala de referência está ainda a monumentalidade e a grandiosidade acrescida dos objectos que consagra quer à representação do património estético e cultural da admiração humana como aos símbolos do poder e força da sua acção no micro e macrocosmo. Manifesto o desejo de apreender aspectos essenciais da intervenção e da ordem terrena, há ainda lugar para o pessimismo histórico. Perspectiva partilhada e não superada pela consciência extra-humana dos audaciosos de Coragem, o mundo vai acabar (1993-2003) e pelo pacato viajante extra-terrestre de The Superabbit (your moments, your music), 2002. Um coelho sensível, de gosto educado e detentor de uma alta sensibilidade artística e cívica que na sua viagem ao planeta terra não deixa de insistir na tese do grande amigo, T.S. Eliot, e advertir os humanos sobre o horizonte e os destinos da cultura humana[ii].


[i] Pascale Cassagnau, “Chris Burden: Les turbulences du réel”, Omnibus, nº 14, Outubro 1995, pag. 6.

[ii] T.S.Eliot, “Os três sentidos de «cultura»”, in Ensaios Escolhidos, Lisboa, Cotovia, 1996, pp. 117-127.

Entrevista a VASCO ARAÚJO

(Original: Sandra Vieira Jürgens, «Vasco Araújo». In: arq./a: Arquitectura e Arte, n. 21, Setembro/Outubro 2003, pp. 86-89.)

A ópera, o canto e a cultura clássica são peças fundamentais no trabalho de Vasco Araújo. São referências que sugerem ao artista continuidades no tempo e pontos fixos na trama histórica que une as épocas e os homens. E são, simultaneamente, os marcos da cultura onde bem se reflecte os fios complexos que envolvem o sentir humano e as fragilidades de todo o pensamento centrado em antinomias e lógicas de sentido único. Vasco Araújo foi distinguido com o Prémio Novos Artistas – EDP Artes, em 2002.

Sandra Vieira Jürgens – No seu corpo de trabalho mantém uma forte ligação com a ópera. Como é que chegou a interessar-te por esse campo artístico?

Vasco Araújo: A ópera surgiu de uma forma muito engraçada. Lembro-me, teria eu 10 anos, de  assistir a uma ópera na televisão. Era a Aida. Para mim foi marcante, sobretudo por ser a Aida, o esplendor máximo da ópera. Fiquei completamente fascinado! E, apesar de gostar de outro tipo de música, a partir daí, fui descobrindo a ópera, não como género musical, mas como espectáculo total que é. Passei a ouvir ópera constantemente e, pelo facto de gostar tanto e de acompanhar os discos, fui construindo a voz. A minha voz foi aumentando e as notas foram surgindo cada vez mais. Entretanto, vou para as Belas Artes. Já queria ser escultor desde pequeno. E também cantor. Até tentei ir para o conservatório, mas não pude entrar porque não sabia ler música.  Só mais tarde, é que encontro um professor particular de canto que me convence a ir para o conservatório. Isso coincide com a altura em que estava a acabar as Belas Artes. Acabo as Belas Artes, faço o exame de admissão e chego a entrar no Conservatório. Fiquei feliz da vida a achar que ia ser cantor e não artista.  De facto, sente-se um enorme vazio quando se sai das Belas Artes, porque ninguém nos prepara para o mundo e para ser artista. E ser artista não é ter uma galeria ou fazer uma exposição num museu ou em espaços expositivos. Ser artista é um estado de espírito ou uma crença interior de o ser. Fui então para o Conservatório mas, ao fim de três meses, percebi que já era tarde e que não era isso o que queria. Tinha 24 ou 25 anos na altura, o que era complicado para o canto, que exige pelo menos 8 anos de estudos. Entretanto, apesar de ter dito que não queria ser artista,  resolvi ir para a Maumaus. E penso que foi aí que tomei consciência sobre o que era ser artista e sobre o que queria fazer como artista.

SVJ: Para além desse percurso, de onde vem o interesse em associar esse universo à sua actividade artística?

VA: Foi derivado ao facto de ter tido essa crença de ser cantor e ter percebido o que era a ópera, os seus mecanismos, a sua história, o que representam as diversas vozes das personagens naquele teatro cantado, que quis trabalhar sobre a ópera.  Não sobre a ópera, porque acho que essa ideia está errada. A ópera é um meio de eu chegar a outras situações. Ando à procura de personagens que digam qualquer coisa, não propriamente da ópera em si. O que mais me interessa é transmitir sentimentos e que as pessoas se questionem. E não é o questionar do tipo concordo ou não concordo, gosto ou não gosto. É um questionar interior, de um outro eu ou dos vários eus que nós temos. Ao transformar-me em Norma ou em Tosca, quero que as pessoas não fiquem standardizadas num modelo que a sociedade, que a família ou a lei lhes impõe. Apetece-me que as pessoas reflictam sobre as questões – o que é que eu sou, o que é que eu estou aqui a fazer, porque é que eu me chamo assim, porque é que eu sou artista, porque é que eu sou engenheiro, advogado…? Porque é que eu amo ou não amo, porque é que eu sou arrogante ou não ? Que personagem é esta que eu represento? Será que esta personagem é válida ou tenho uma outra personagem que pode ser melhor ou pior do que esta? De certa forma, tento construir as minhas peças como se fossem quadros vivos em que as pessoas se confrontam com aquelas situações. Acho que tentei fazer isso numa peça. No Duettino, que é uma peça complicada porque as pessoas podem não saber quem é o D. Giovanni, podem nunca ter ouvido, não reconhecer… Mas o que me interessa nessa peça não é que as pessoas entendam o texto. Se perceberem tanto melhor, mas o mais importante é a angústia daquela personagem que tem dentro dela duas ou três personagens. E interessa-me que isso saia pela voz. Para mim a voz é a coisa mais importante que nós temos, é mais importante que ver, que ouvir. A voz é o poder máximo que o ser humano tem, é aquilo que nos dá força e poder. Portanto no Duettino essa questão da voz funciona como o dar voz a todos aqueles que estão dentro de um único, que podemos ser todos nós.  Nós interagimos uns com os outros, se estiver com uma pessoa durante muito tempo posso ficar com tiques dela e captar alguns traços da sua personalidade. Ela influencia-me porque gosto do seu carácter e eu também posso influenciá-la. São essas interacções que quero expressar nas artes plásticas.

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NELSON LEIRNER: um+dois+mil


(Original: Sandra Vieira Jürgens, «Nelson Leirner: Um+Dois+Mil», [W] Arte, 2003, pp. 122-123).

Nelson Leirner, Sotheby’s, 2000

Sobre a exposição um+dois+mil de Nelson Leirner na Culturgest Porto – Galeria do Edifício da Caixa Geral de Depósitos, em 2003.

Com 71 anos de idade, um percurso de cinco décadas dedicadas às artes plásticas, um extenso currículo de exposições individuais e colectivas, a que se somam algumas polémicas e vivos debates lançados em torno de alguns trabalhos e intervenções, Nelson Leirner apresenta a sua primeira exposição individual em Portugal, na Culturgest do Porto. A mostra intitula-se um+dois+mil e reúne cerca de duas dezenas de obras, entre trabalhos antigos e recentes, que nos dão uma perspectiva alargada do que tem sido a produção deste autor brasileiro.

Na sua obra, Leirner trabalha sobre temas relacionados com aspectos da cultura e realidade sociopolítica brasileiras, evidenciando um modo particular de construir sentido a partir da associação de materiais familiares. Sensível no título da exposição, a operação de somar parcelas ganha proeminência, na medida em que traduz um modo de actuar marcado pelo exercício da acumulação. Em vez da unidade isolada, é a reunião e a adição de objectos que não raro aparecem como princípios constitutivos do seu trabalho artístico. Esta forma de fazer é evidente na instalação Futebol (2001), onde, pela apresentação de um cenário no qual o plano da diversidade se expõe de um modo lúdico, Leirner reconstitui a atmosfera própria do futebol enquanto acontecimento. Entre a assistência o espectador encontra, por exemplo, estatuetas de heróis e figuras de culto religioso, mas também uma panóplia de objectos que o remetem para inúmeras referências ligadas a manifestações populares e fenómenos característicos da cultura brasileira. O mesmo se verifica em O Armazém (2003), instalação cujo título evidencia a cultura de bazar que se exprime na escolha e na multiplicidade de objectos reunidos: artefactos de devoção religiosa, imagens da Última Ceia, bandeiras do Brasil e reproduções de objectos de arte, em quantidades que nos transpõem facilmente para a ordem da produção massificada e para a superabundância da sociedade de consumo.

Nestas realizações, Leirner constrói um retrato comentado, crítico, da cultura de massas, sem deixar de desencadear uma perspectiva que tem em conta a existência de uma outra produção: essa, qualificada de consumo, baseada numa relação em segunda mão, que assenta nas possibilidades e alternativas de uma prática assente na bricolage, na inventividade artesanal e no fazer que combina de uma forma sincrética os elementos recebidos. Algo que Michel de Certeau, em L’invention du quotidien: 1. arts de faire constatava na capacidade das práticas do quotidiano de usarem modos de sincretismo para transgredir e subverter a lógica das culturas oficiais dominantes.

Também Leirner assim procede em relação aos modelos consagrados da história da arte. Demonstra-o, por exemplo, Homenagem a Fontana (1967), uma das suas obras mais emblemáticas, na qual ensaia descentrar o papel e a função de paternidade do autor, através da reprodução de cópias das séries Concetto spaziale de Lucio Fontana, realizadas em versão “do it yourself” com diferentes materiais e técnicas. Esta perspectiva surge igualmente bem vincada em La Gioconda, onde uma das referências mais consagradas do mundo da arte é transposta para o âmbito da cultura do popular e do quotidiano, subtraindo-se aos valores da tradição artística estabelecida – à autonomia, à originalidade, à transcendência e ao poder aural e exclusivo de uma obra de arte. E nada escapa: aí figuram a tampa da caixa de biscoitos, os botões e o bloco de notas, expressando a produção diversificada de sucedâneos em tiragens ilimitadas a baixo custo.

Ora é este mesmo regime de imagens multiplicadas que podemos encontrar destacado nas obras em que Leirner revela maior interesse em abordar a política, a territorialidade e o poder exercido pela economia dominante. É o caso de Redescobrimento do Brasil e de Ajuda, peças que fazem parte do Projeto Care (1966/2000), onde o artista trata de evidenciar o lado mais grotesco das estratégias expansionistas e imperialistas, expondo cruamente quer as relações de domínio que se pautam por fortes desequilíbrios, quer os modos de convivência tecidos por intensas desigualdades na distribuição da riqueza. Nesse sentido cabe destacar uma série de obras mais recente, formada por um conjunto de intervenções que resultou de um exercício de colagem de pequenos e múltiplos autocolantes infanto-juvenis – Mickey, Tweetie, smileys, mas também bandeirinhas norte-americanas e esqueletos – feito sobre mapas e globos terrestres, no qual Nelson Leirner nos interpela de maneira frontal perante os limites geográficos da riqueza e da pobreza e perante os sinais distintivos do riso e da morte. Trata-se de Assim é… se lhe parece (2003), peça realizada ainda antes dos acontecimentos mais recentes no Iraque.

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