(Original: Sandra Vieira Jürgens, «Nelson Leirner: Um+Dois+Mil», [W] Arte, 2003, pp. 122-123).
Nelson Leirner, Sotheby’s, 2000
Sobre a exposição um+dois+mil de Nelson Leirner na Culturgest Porto – Galeria do Edifício da Caixa Geral de Depósitos, em 2003.
Com 71 anos de idade, um percurso de cinco décadas dedicadas às artes plásticas, um extenso currículo de exposições individuais e colectivas, a que se somam algumas polémicas e vivos debates lançados em torno de alguns trabalhos e intervenções, Nelson Leirner apresenta a sua primeira exposição individual em Portugal, na Culturgest do Porto. A mostra intitula-se um+dois+mil e reúne cerca de duas dezenas de obras, entre trabalhos antigos e recentes, que nos dão uma perspectiva alargada do que tem sido a produção deste autor brasileiro.
Na sua obra, Leirner trabalha sobre temas relacionados com aspectos da cultura e realidade sociopolítica brasileiras, evidenciando um modo particular de construir sentido a partir da associação de materiais familiares. Sensível no título da exposição, a operação de somar parcelas ganha proeminência, na medida em que traduz um modo de actuar marcado pelo exercício da acumulação. Em vez da unidade isolada, é a reunião e a adição de objectos que não raro aparecem como princípios constitutivos do seu trabalho artístico. Esta forma de fazer é evidente na instalação Futebol (2001), onde, pela apresentação de um cenário no qual o plano da diversidade se expõe de um modo lúdico, Leirner reconstitui a atmosfera própria do futebol enquanto acontecimento. Entre a assistência o espectador encontra, por exemplo, estatuetas de heróis e figuras de culto religioso, mas também uma panóplia de objectos que o remetem para inúmeras referências ligadas a manifestações populares e fenómenos característicos da cultura brasileira. O mesmo se verifica em O Armazém (2003), instalação cujo título evidencia a cultura de bazar que se exprime na escolha e na multiplicidade de objectos reunidos: artefactos de devoção religiosa, imagens da Última Ceia, bandeiras do Brasil e reproduções de objectos de arte, em quantidades que nos transpõem facilmente para a ordem da produção massificada e para a superabundância da sociedade de consumo.
Nestas realizações, Leirner constrói um retrato comentado, crítico, da cultura de massas, sem deixar de desencadear uma perspectiva que tem em conta a existência de uma outra produção: essa, qualificada de consumo, baseada numa relação em segunda mão, que assenta nas possibilidades e alternativas de uma prática assente na bricolage, na inventividade artesanal e no fazer que combina de uma forma sincrética os elementos recebidos. Algo que Michel de Certeau, em L’invention du quotidien: 1. arts de faire constatava na capacidade das práticas do quotidiano de usarem modos de sincretismo para transgredir e subverter a lógica das culturas oficiais dominantes.
Também Leirner assim procede em relação aos modelos consagrados da história da arte. Demonstra-o, por exemplo, Homenagem a Fontana (1967), uma das suas obras mais emblemáticas, na qual ensaia descentrar o papel e a função de paternidade do autor, através da reprodução de cópias das séries Concetto spaziale de Lucio Fontana, realizadas em versão “do it yourself” com diferentes materiais e técnicas. Esta perspectiva surge igualmente bem vincada em La Gioconda, onde uma das referências mais consagradas do mundo da arte é transposta para o âmbito da cultura do popular e do quotidiano, subtraindo-se aos valores da tradição artística estabelecida – à autonomia, à originalidade, à transcendência e ao poder aural e exclusivo de uma obra de arte. E nada escapa: aí figuram a tampa da caixa de biscoitos, os botões e o bloco de notas, expressando a produção diversificada de sucedâneos em tiragens ilimitadas a baixo custo.
Ora é este mesmo regime de imagens multiplicadas que podemos encontrar destacado nas obras em que Leirner revela maior interesse em abordar a política, a territorialidade e o poder exercido pela economia dominante. É o caso de Redescobrimento do Brasil e de Ajuda, peças que fazem parte do Projeto Care (1966/2000), onde o artista trata de evidenciar o lado mais grotesco das estratégias expansionistas e imperialistas, expondo cruamente quer as relações de domínio que se pautam por fortes desequilíbrios, quer os modos de convivência tecidos por intensas desigualdades na distribuição da riqueza. Nesse sentido cabe destacar uma série de obras mais recente, formada por um conjunto de intervenções que resultou de um exercício de colagem de pequenos e múltiplos autocolantes infanto-juvenis – Mickey, Tweetie, smileys, mas também bandeirinhas norte-americanas e esqueletos – feito sobre mapas e globos terrestres, no qual Nelson Leirner nos interpela de maneira frontal perante os limites geográficos da riqueza e da pobreza e perante os sinais distintivos do riso e da morte. Trata-se de Assim é… se lhe parece (2003), peça realizada ainda antes dos acontecimentos mais recentes no Iraque.