(Original: Sandra Vieira Jürgens, «Antologia do Bom Comportamento» in AA.VV. (Óscar Faria e Paulo Mendes), Paulo Mendes: The Best of… Vogue, Porto, Mimesis, 2002, pp. 25-35).
A prática da interferência, a dinâmica da fractura e da desordem constituem na obra de Paulo Mendes uma das orientações emblemáticas. É a própria esfera do exercício da sabotagem que advém horizonte referencial do seu projecto, aquando da sua primeira mostra individual, há dez anos, na Galeria Zero. Nessa ocasião realiza “The Conversation” (1992), peça que adquire um valor simbólico por nela se evidenciarem as características e qualidades transgressivas que norteiam os princípios do seu método de trabalho. A peça, através do conjunto formado por uma mesa e pela relação incoincidente de duas cadeiras, desafia a possível sensação de harmonia reinante, colocando em destaque a ideia de antagonismo e de impossibilidade dialógica. Para a caracterização deste ambiente conflituoso e para desestabilizar ainda mais a imagem de uma possível convivência pacífica entre os dois interlocutores, concorria ainda a natureza do registo sonoro que ecoava por todo o espaço da instalação. Tratava-se de uma composição de Stockhausen produzida por receptores de onda curta, cuja estrutura conceptual baseada nos valores da aleatoriedade e dissonância vinha reforçar o sentido de disrupção comunicativa.
É a mesma sensação de turbulência e de perversão da ordem comum a que encontra mais tarde correspondente expressão no projecto individual “Karaoke Life Project / #2 Kaleidoscope Frenzy”, realizado na Galeria João Graça em 1999, no qual, sob uma atmosfera carregada e amplamente significante, o artista dá continuidade ao questionamento da uniformização consensual e abstracta dos comportamentos. Ainda que aqui a abordagem surja transposta para a esfera mais intimista da experiência dos afectos, tratando-se sobretudo de um itinerário marcado por apelos sexuais e voyeurísticos, onde a exacta referência aos territórios ficcionais de J. G. Ballard e de David Cronenberg deixa entrever o papel da tensão física e emocional perante o desafio de superar a alienação dos sentidos. Caso exemplar dessa evocação é “Kisser” (1999), uma das obras que compõem esta instalação. Trata-se de uma peça vídeo na qual o domínio do relacionamento amoroso é retratado nos termos da complexidade psicológica provocada pelo comportamento de duas personagens femininas que, no ecrã, se envolvem num acto a cada momento esperado, mas nunca consumado – o beijo. Frustrada a expectativa de desfecho harmonioso da sequência fílmica é pois a implicada sensação de falha a que ensombra a própria imagem-ícone de união perfeita.
Deste entendimento singular da intervenção artística resultariam não apenas trabalhos onde as manifestações e os traços mais característicos da contemporaneidade se tornaram objecto de reflexão, como em “Kiss me stupid / 35 Years of Love” (1995)[i], mas também um núcleo de obras onde o plano político é abundantemente representado e a perspectiva autoral fortemente marcada pelo significado intervencionista do discurso. (…)
[i] Para além desta, podemos salientar as obras “Naked Kiss / Fucking Television” (1995), “E[x] – Romance (Surgical Plastic Love) (1997) e “Morphing Mosh (House # 2) / Transglobal cultural remix with a set from a brazilian soap–opera depicting Portuguese immigration, some local cultural elements, a brazilian stand-up comediant and other multicultural curiosities acquired in the city of Oporto over a three day period / Work in Progress” ( 2001).
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